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Déa Januzzi: Será que vai dar tempo?

Comentário do Blog: Dea Januzzi foi morar na dimensão dos anjos, que passaram a ter o privilégio da sua companhia. Suas crônicas transbordante de amorosa criatividade reverberam nos céus. Alegria dos anjos tristeza nossa. Minha amiga Genoveva Coelho trouxe-nos a lembrança esta crônica com a qual respeitosamente a homenageamos. Na Foto com a poeta e escritora Adélia Prado, em Divinópolis(MG), 2013

Será que vai dar tempo de correr até a Rua do Ouro, a poucos quarteirões da minha nova casa e abraçar René que está fazendo 101 anos no próximo dia 6 deste mês? Ela é uma velha amiga de minha mãe que já partiu há seis anos. Será que vai dar tempo de comemorar o Natal e o Ano-Novo em outras datas como propôs Mary Arantes, pois não estou conseguindo mais esperar a meia-noite dessas datas de tanto cansaço?

Será que vai dar tempo de parar de fumar? Não, de tomar vinho eu nunca vou parar. Já pedi ao meu filho que todos devem tomar vinho no meu derradeiro dia e como Jane Fonda no filme “E se fôssemos morar todos juntos”, que não olhem para trás e deixem as taças nas bordas de uma urna funerária (ou melhor dizer caixão) forrado e encapado com letras, muitas letras, porque foram elas que me conduziram pelos caminhos intrincados da alma e da emoção. Ou seria melhor não ter escolhido um caminho tão tortuoso, cheio de pedras e tropeços? Queria também escutar, pela última vez, a música Rain Dogs, de Tom Waitts ou uma das tantas de Adriana Calcanhoto. Pode ser aquela que diz assim “Vou arranhar os seus discos…”. E alguma de Zeca Baleiro, de Chico, Caetano e Gil, por favor.

Será que vai dar tempo de falar do meu próprio envelhecer? De mostrar que ser velho hoje é chique. É só prestar atenção no bairro de Copacabana no Rio. Ser chique hoje não é idolatrar a garota de Ipanema, mas o velho de Copacabana. Alguém deveria fazer essa música. Segundo o IBGE, Copacabana é o bairro que concentra o maior número de idosos (velhos é melhor, não acham?) do País: um terço de seus moradores, inclusive um bom número de estrangeiros, já passaram dos 60 anos.

Será que vai dar tempo de fazer uma crônica sobre Alexandre Kalache, que mora em Copacabana e sonha com a cidade amiga do idoso? Será que vai dar tempo de ver essa cidade planejada por Kalache? Pois acabo de cair num buraco no meio da rua e arrebentar o cotovelo esquerdo e rasgar a minha blusa amarela. O que conheço hoje são cidades inimigas dos idosos, principalmente em Belo Horizonte onde andar pelas ruas é praticar esporte radical. Cansei de cair em pequenos e invisíveis buracos nas ruas. Será que vai dar tempo de mostrar para os prefeitos, governadores e presidentes que eles também estão envelhecendo? Será que ninguém tem consciência disso? Será que não vão investir nas rugas e deixar os cabelos embranquecerem em paz?

Será que vai dar tempo de viver tranquila, sem ficar mudando de um bairro para o outro como cigana do asfalto? Será que as imobiliárias vão parar de me perseguir e de aumentar os aluguéis ou de massacrar os inquilinos? Será que vai dar tempo de ter uma casa própria? Ou quem sabe uma kitinete, dessas bem modernas para colocar minhas roupas, brincos, colares, óculos da Zótica e ficar parecida com Iris Apfel, que aos 92 anos continua sendo modelo para todas as mulheres? Cansei de ter como espelho as modelos magras e jovens das passarelas, as atrizes com caras tortas de tantas cirurgias plásticas. Cansei de não poder envelhecer.

Será que vai dar tempo de aceitar o convite do meu amigo do coração Eusébio Lobo e passar uns dias em sua casa na Ilha de Itaparica? Será que vai dar tempo de mergulhar no mar pelo menos por uma semana? Ou, pelo menos, um banho de cachoeira? Será que vai dar tempo de tentar mudar essa bobagem de a maioria dos velhos não gostarem de ser chamados de velhos? Será que vai dar tempo de rir da frase de Lisa de que “estou velha demais para ficar feia!” Será que vai dar tempo de ser feliz por pelo menos alguns momentos cruciais? Será que vai dar tempo de reencontrar os poucos amigos que ainda tenho? Será que vai dar tempo de procurar novos irmãos pela vida? Pelo menos encontrar a minha família cósmica.

Será que vai dar tempo de aceitar o convite das duas Silvanas para fazer o Céu na Terra e endireitar os movimentos do meu corpo estropiado pelos primeiros sinais de artrose? Será que vou ter tempo e dinheiro para ir ao oftalmologista para acertar o grau dos meus óculos e não ter mais medo de andar à noite só enxergando vultos e escuridão? Será que vai dar tempo de fazer Pilates ou vou ficar assim enferrujada, estalando os ossos?

Será que vai dar tempo de desfazer todas essas caixas da mudança? Ou já deixo todas do mesmo jeito para o próximo endereço? Será que vai dar tempo de confessar a minha “amizade selada por Deus” com Magui, Maria Celeste, Maya Santana, Cristina Bahia e de dar um pulinho no Sítio Sertãozinho, no Rio de Janeiro ou em Tiradentes? Será que vai dar tempo de ir ao Uruguai onde o meu único ídolo atual, o presidente Pepe Mujica, já está perto de deixar a presidência daquele país?

Será que vai dar tempo de ser avó, de terminar os implantes dos meus dentes e voltar a rir com a boca inteira? Será que vai dar tempo de fazer a massagem da borboleta com a Dulce Takamatsu e sair ficar voando acima de mim? Ou como se pergunta a minha musa inspiradora de nome Magui: “Será que vai dar tempo de encontrar um vagão de trem daqueles que nem circulam mais. Para cuidar e morar dentro dele, mudando minha paisagem de janelinha em janelinha?” O vagão de Magui terá o teto com papel de parede azul e carregado de estrelas. Será que vai dar tempo?

Nota:12 imagens de Iris Apfel simbolizavam  o modelo de velhice.
Fonte: https://50emais.com.br/dea-januzzi-sera-que-vai-dar-tempo/

Comentários

  1. Oi Juraci,

    Demorei conseguir acessar seu Blog devido a mudança e não entrava com o link das páginas que guardei. Então hoje vi no seu FACE o aviso e aqui estou.
    Eu em BH acompanhando as notícias e você quem me comunicou essa perda. Havia me atualizado na parte da manhã e saí para almoçar e quando retorno vi seu e-mail. Passei a noite em claro e sonhando com Dea...Não consegui ir ao sepultamento pois não conhecia as pessoas do mundo de Dea e me sentiria muito sozinha, o que iria piorar meu emocional nesse momento. Nosso contato era antigo, já havíamos falado por telefone em anos anteriores, devido aos trabalhos com Power Point que fiz com algumas crônicas e você até publicou sobre Angela Lago, mas só nesse ano nos encontramos pessoalmente, porque Dea voltou a residir em BH. Ela me ligava quase todos os dias e nos falamos pela última vez no dia 23, mas em seguida ela deixou um áudio. Estava feliz com a organização do livro que será lançado no dia 21, dia do aniversário de seu filho Gabriel e na pagina dele há muita postagem sobre o conteúdo dessa crônica, que ele acessou vendo dias depois a mesma criação foto/mensagem que lhe enviei.

    Então...deu tempo de tomarmos um café juntas numa confeitaria aqui perto de onde moro, após busca-la no dia de sua consulta no SUS, no meu antigo local de trabalho e ela então me contou sobre uma queda da cadeira com rodinhas, sentindo tonteira. Como sou muito organizada e estava ajudando que ela encontrasse outro local para mudar, combinamos que eu ajudaria na arrumação da nova casa (o que adoro fazer para outras pessoas) e também do computador, além de fazermos um Power Point/Vídeo com as fotos e histórias dos moradores de rua, último projeto que ela participou ativamente aqui em BH e você ter visto no FACE.

    Ela muito ligada ao telefone e eu não e agora ele silenciou...
    Mas eu escrevia "cartinha" para ela e enviava no WhatsApp alem de postar comentários em suas ultimas crônicas no Blog do Sindicato dos Jornalistas.

    A esperança é que nos reencontremos e possamos continuar a fortalecer nossos laços.
    Grata por ser com quem posso desabafar, sobre essa entrada e saída rápida de Dea em minha vida.
    Genoveva

    http://www.sjpmg.org.br/2020/09/sonhos-ressuscitados-por-dea-januzzi/
    http://www.sjpmg.org.br/2020/10/ah-como-almejo-o-poder-por-dea-januzzi/


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  2. A vida nos dá e também nos afasta de algumas conquistas. Não conheci Dea pessoalmente. o quê nos uniu foi o Blog. Em alguns momentos pela continuidade da vida em outra dimensão. O interessante é que exatamente estes fatos nos aproximam.
    Agradecida pelos artigos. Grande abraço Genoveva.
    Em tempo: Dia 21 terá lançamento do livro da Dea. Dá uma olhada no Face dela, está sendo divulgado por lá.

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