Pular para o conteúdo principal

Coletivo Filhas da Mãe - a origem

 Cuidar, verbo feminino?

Cuidar é um verbo feminino. Não por escolha das mulheres. E, sim, por determinação cultural.
Cabe às mães, segundo essa crença, levar adiante a vida dos futuros humanos. Independente se elas têm condições, preparo ou vontade. Essa tarefa do cuidado não se dá somente para os filhos. Idosos e doentes também, em sua gritante maioria, tornam-se problemas para as mulheres da família. Quando muito os homens entram com dinheiro. Algum dinheiro. Como as mulheres resolvem? Ajudam-se mutuamente. É o que sobra! Muitas mulheres acabam endividadas para poder manter os familiares idosos ou doentes vivos e com dignidade.
A jornalista, psicanalista e pesquisadora Cosette Castro, que vive em Brasília, lançou um livro contando suas experiencias nessa área e criou também um movimento de mulheres cuidadoras.
E ela fala de mais essa ´área de “responsabilidade feminina” nesse texto que divide com as leitoras da Fala Feminina.

Fatima Torri, editora

Fundadora do Coletivo Filhas da Mãe, criado em 2019 para acolher cuidadoras, familiares, amigas e vizinhas de pessoas com demências como o Alzheimer, a psicanalista, jornalista e pesquisadora Cosette Castro lançou recentemente o livro Cuidado e autocuidado entre mulheres ativistas no mundo on-line: estimulando (novas) subjetividades em tempos de pandemia e violência.
 
A expressão “filho da mãe” tem conotação ofensiva. Serve para desqualificar a mãe de alguém e, por óbvia consequência, a pessoa atacada. Mas uma das verdades do mundo é que todos são filhos e filhas de uma mãe. Uns com mais orgulho e dedicação que outros. No caso da Cosette Castro, 60 anos, gaúcha que adotou Brasília há 16, a entrega à atividade de cuidado foi completa. “Filha única, tive de assumir o cuidado dela por quase 10 anos, e até passei por endividamento por causa do alto custo da doença. Todas as mulheres que conheço cuidam gratuitamente de alguém ou de várias pessoas ao mesmo tempo”, afirma.
 
A experiência pessoal a aproximou de outras mulheres com histórias parecidas e impulsionou a realização de um de seus pós-doutorados, no Instituto de Psicologia da UnB, sobre cuidado e autocuidado entre mulheres ativistas, que se estendeu por dois anos pela pandemia, pelo distanciamento e pela morte da mãe, que tinha Alzheimer avançado, em janeiro deste ano.  Também a levou a criar o Coletivo Filhas da Mãe, em 2019, junto com Ana Castro e outras três amigas,  formado por mulheres cuidadoras de mães e familiares com demências e Alzheimer, que estimula o cuidado e o autocuidado. “Falamos no feminino porque 82% do cuidado no Brasil é realizado gratuitamente e de forma invisível por mulheres”, destaca.
 
Ela e Ana, como coordenadoras do grupo,  contam ainda com um blog do coletivo no Correio Braziliense desde março de 2021, no qual escrevem semanalmente sobre envelhecimento, políticas públicas, demências, direitos das mulheres, cuidado e autocuidado. E com um bloco de Carnaval, o Filhas da Mãe, que sai em cortejo pelas ruas da capital do Distrito Federal junto com outros blocos da área da saúde mental, no primeiro sábado pós-carnaval. “Nele, usamos o lúdico para falar sobre Alzheimer, cuidado, autocuidado e solidariedade”, afirma Cosette.
“O Brasil é um país perigoso para meninas, mulheres e para mulheres idosas”

Na área clínica, atende principalmente pacientes mulheres. A maioria sofreu diferentes tipos de violências no decorrer da vida: “além desse grande problema social, as mulheres cuidam, mas têm pouco tempo para se dedicar ao autocuidado, em geral, visto como egoísmo. Isso também ocorre entre mulheres ativistas.” Segundo ela, “a ideia de cuidado está tão naturalizada que é vista como obrigação amorosa, e sendo do campo do afeto ‘não é trabalho’”.
Apoiadora da ONG Centro Feminista de Estudos e Assessoria – CFEMEA, que desenvolveu um projeto inédito chamado Roda de Cuidado e Autocuidado entre Mulheres Ativistas, Cosette participou de duas atividades presenciais e depois veio a pandemia. “Aí o projeto foi adaptado ao mundo on-line. Eu seguia participando, inclusive ajudando a organizar rodas, que são horizontais, e pedi licença ao CFEMEA para estudar o projeto e entrevistar as participantes, ampliando essas experiências para outros espaços”, conta.
 
Unindo essa experiência ao histórico com as pacientes, os projetos com o Coletivo Filhas da Mãe, e os estudos acadêmicos, teve a ideia de produzir o livro que é o resultado da pesquisa de Pós-Doutorado. Cuidado e autocuidado entre mulheres ativistas no mundo on-line: estimulando (novas) subjetividades em tempos de pandemia e violência, lançado em setembro pela editora luso-brasileira especializada em livros acadêmicos Ria Editorial. “É um livro que se coloca ao lado das mulheres de diferentes maneiras. E fala da naturalização das violências em casa, no mercado, na academia, no governo, tudo isso para apontar a importância do cuidado e do autocuidado” afirma Cosette. Ela traz na obra a constatação de que se antes da pandemia da Covid-19 era possível contar com redes de apoio femininas, o distanciamento social dificultou essa aproximação, ao menos no que diz respeito às formas tradicionais de encontro, ainda mais para aquelas em situação de vulnerabilidade.
 
“Trabalho com conceitos que tenho desenvolvido como a pedagogia do feminicídio e a pedagogia da secundarização. Relaciono também o uso de tecnologias digitais que deveriam estar disponíveis para todos e todas, mas há diferentes barreiras à inclusão digital. Entre elas a falta de dinheiro para comprar tempo de Internet, o uso de aparelhos antigos com restrição de memória, a falta de infraestrutura de rede, e o baixo letramento, alfabetização digital. Espero que contribua para mulheres que não se consideravam feministas se darem conta que já são sem saber. Tento mostrar como muitas de nós (ainda) reproduzimos discursos machistas e naturalizamos e multiplicamos as violências”, conclui.

Cuidado e autocuidado entre mulheres ativistas no mundo online: estimulando (novas) subjetividades em tempos de pandemia e violência.
168 páginas
Ria Editorial
Disponível gratuitamente 

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

O Dente-de-Leão e o Viva a Velhice

  A belíssima lenda do  dente-de leão e seus significados Segundo uma lenda irlandesa, o dente-de-leão é a morada das fadas, uma vez que elas eram livres para se movimentarem nos prados. Quando a Terra era habitada por gnomos, elfos e fadas, essas criaturas viviam livremente na natureza. A chegada do homem os forçou a se refugiar na floresta. Mas   as fadas   tinham roupas muito chamativas para conseguirem se camuflar em seus arredores. Por esta razão, elas foram forçadas a se tornarem dentes-de-leão. Comentário do Blog: A beleza  do dente-de-leão está na sua simplicidade. No convívio perene com a natureza, no quase mistério sutil e mágico da sua multiplicação. Por isso e por muito mais  é que elegi o dente-de-leão  como símbolo ou marca do Viva a Velhice. Imagem  Ervanária Palmeira   O dente-de-leão é uma planta perene, típica dos climas temperados, que espontaneamente cresce praticamente em todo o lugar: na beira de estrada, à beira de campos de cultivo, prados, planícies, colinas e

‘Quem anda no trilho é trem de ferro, sou água que corre entre pedras’ – Manoel de Barros

  Dirigido pelo cineasta vencedor do Oscar, Laurent Witz, ‘Cogs’ conta a história de um mundo construído em um sistema mecanizado que favorece apenas alguns. Segue dois personagens cujas vidas parecem predeterminadas por este sistema e as circunstâncias em que nasceram. O filme foi feito para o lançamento internacional da AIME, uma organização de caridade em missão para criar um mundo mais justo, criando igualdade no sistema educacional. O curta-animação ‘Cogs’ conta a história de dois meninos que se encontram, literalmente, em faixas separadas e pré-determinadas em suas vidas, e o drama depende do esforço para libertar-se dessas limitações impostas. “Andar sobre trilhos pode ser bom ou mau. Quando uma economia anda sobre trilhos parece que é bom. Quando os seres humanos andam sobre trilhos é mau sinal, é sinal de desumanização, de que a decisão transitou do homem para a engrenagem que construiu. Este cenário distópico assombra a literatura e o cinema ocidentais. Que fazer?  A resp

Boas notícias para pessoas sedentárias

Depois dos 50, também é possível entrar em forma. Um estudo garante que a atividade física, mesmo após meio século de idade, seja um bom investimento para a aposentadoria 31% da população que se declara abertamente sedentária (de acordo com o estudo The World Burden of Diseases, publicado na  revista The Lancet)  e que, em meados dos anos 50, não pratica  exercícios físicos,  terá interesse em saber que, segundo  novas pesquisas,  Ainda é hora de evitar a degeneração muscular e óssea que pode fazer de você um homem velho antes do tempo. O estudo, realizado em conjunto por 5 universidades, comparou a função muscular, a densidade mineral óssea (a quantidade de cálcio e outros minerais presentes em uma área do osso) e a composição corporal de idosos que praticaram esportes em todo o mundo. sua idade adulta com aqueles que começaram tarde, especificamente após 50 anos. O objetivo era determinar se o fato de ter começado a treinar tão tarde impede atingir o nível de desempenho atlético e as

Saber ouvir 2 - Escutatória Rubem Alves

Sempre vejo anunciados cursos de oratória. Nunca vi anunciado curso de escutatória. Todo mundo quer aprender a falar... Ninguém quer aprender a ouvir. Pensei em oferecer um curso de escutatória, mas acho que ninguém vai se matricular. Escutar é complicado e sutil. Diz Alberto Caeiro que... Não é bastante não ser cego para ver as árvores e as flores. É preciso também não ter filosofia nenhuma. Filosofia é um monte de ideias, dentro da cabeça, sobre como são as coisas. Para se ver, é preciso que a cabeça esteja vazia. Parafraseio o Alberto Caeiro: Não é bastante ter ouvidos para ouvir o que é dito. É preciso também que haja silêncio dentro da alma. Daí a dificuldade: A gente não aguenta ouvir o que o outro diz sem logo dar um palpite melhor... Sem misturar o que ele diz com aquilo que a gente tem a dizer. Como se aquilo que ele diz não fosse digno de descansada consideração...   E precisasse ser complementado por aquilo que a gente tem a dizer, que é muito melhor. N

A velhice em poesia

Duas formas de ver a velhice. Você está convidado a "poetizar" por aqui . Sobre o tema que lhe agradar. Construiremos a várias mãos "o domingo com poesia". A Velhice Pede Desculpas - Cecília Meireles, in Poemas 1958   Tão velho estou como árvore no inverno, vulcão sufocado, pássaro sonolento. Tão velho estou, de pálpebras baixas, acostumado apenas ao som das músicas, à forma das letras. Fere-me a luz das lâmpadas, o grito frenético dos provisórios dias do mundo: Mas há um sol eterno, eterno e brando e uma voz que não me canso, muito longe, de ouvir. Desculpai-me esta face, que se fez resignada: já não é a minha, mas a do tempo, com seus muitos episódios. Desculpai-me não ser bem eu: mas um fantasma de tudo. Recebereis em mim muitos mil anos, é certo, com suas sombras, porém, suas intermináveis sombras. Desculpai-me viver ainda: que os destroços, mesmo os da maior glória, são na verdade só destroços, destroços. A velhice   - Olavo Bilac Olha estas velhas árvores, ma