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A financeirização da velhice

Escândalo na França cobra dos presidenciáveis plano para o setor de cuidados

Por Guita Grin Debert - Professora do Departamento de Antropologia da Unicamp e pesquisadora da Fapesp e do CNPq, é autora de “Reinvenção da Velhice” (Edusp) e Jorge Félix - Doutor em ciências sociais, professor de gerontologia da USP e pesquisador da Fapesp, é autor de “Economia da Longevidade” (ed. 106 Ideias)

tema da velhice invadiu a campanha presidencial da França. Sempre um assunto marginal no debate político —e quase sempre confinado apenas à questão fiscalista da sustentabilidade dos sistemas de Previdência—, o envelhecimento populacional, desta vez, se impôs na agenda eleitoral. O pacto de um silêncio conveniente foi quebrado com uma questão que a pandemia de Covid-19 trouxe à tona: o cuidado de longa duração de idosos.

Essa invasão incômoda para o presidente Emmanuel Macron ocorreu de forma abrupta no fim de janeiro com o lançamento de "Les Fossoyeurs" ("Os coveiros"), do jornalista independente Victor Castanet. O livro-reportagem é resultado de uma investigação sobre um dos mais luxuosos residenciais para idosos (ou Instituições de Longa Permanência para Idosos, Ilpis, como chamamos tecnicamente no Brasil) pertencente à maior empresa europeia do setor e segunda da França, a Orpea, dona de 222 estabelecimentos naquele país.

Castanet denunciou como a Orpea, empresa de capital aberto, pertencente a um "private equity" (fundo de capital privado) e a um fundo de pensão canadense (CPPIB), administra seus residenciais exigindo um alto retorno sobre o investimento e sempre atua alavancada em dívidas (200% sobre o patrimônio) devido à farta distribuição de dividendos, caracterizando assim um processo de financeirização. Castanet relata maus-tratos aos idosos, odor de urina, má alimentação (inclusive com fast food), controle no uso de fraldas, entre outras barbaridades, fruto da demanda elevada de produtividade sobre o trabalho de cuidado.

Nas últimas semanas, o "escândalo das Ehpads" (similar francês de Ilpis) se reveza nas manchetes do Le Monde com a possível guerra na Ucrânia. Macron já mobilizou três ministros para tratarem do caso com receio da repercussão em sua reeleição. O presidente da Orpea caiu depois de um mergulho de 60% no valor das ações em menos de uma semana. Rapidamente, as famílias de idosos clientes da líder do mercado, a Korian, com mais de 303 estabelecimentos na França, também fizeram denúncias semelhantes às do livro de Castanet.

Embora o setor seja regulamentado, as autoridades (inclusive uma comissão no Senado) já falam em negligência de fiscalização e falta de aplicação rigorosa da lei devido a interesses do capital imobiliário. O caso francês ilustra a limitação de se delegar a modelos financeiros um desafio da sociedade superenvelhecida: atender o aumento da demanda por cuidado de pessoas idosas sem a mesma estrutura familiar dos séculos passados —ou seja, sem a disponibilidade sobretudo de mulheres e profissionais cuidadoras em número suficiente. E com limitações também na área filantrópica.

No Brasil, já temos muitas dessas empresas multinacionais que atuam no mesmo modelo financeirizado. Outras estão prospectando o mercado nacional. É esperado que o erro da França sirva de exemplo. Os candidatos a presidente da República devem apresentar, com urgência, seus planos para a criação de uma Política Nacional de Cuidados no Brasil. É preciso regulamentar a atuação do capital financeiro em um setor cada vez mais delicado para as famílias brasileiras.

Fonte https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2022/02/a-financeirizacao-da-velhice.shtml

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