Pular para o conteúdo principal

Ilusão neoliberal de independência

Ilusão neoliberal de independência contribui para servidão jamais vista, diz psicanalista

“O neoliberalismo não é possível sem uma colonização psíquica, que responde pela obediência inconsciente!", explica a docente Nora Merlin

I – Vida e arte

Em qual encruzilhada estamos? O que nos pode salvar ou destruir por completo? Essas são algumas indagações que nos levaram a pesquisar o quanto o neoliberalismo não é apenas um modelo econômico, mas uma prisão de subjetividades. Por que repetimos o que não é bom para nós e defendemos o que nos prejudica?

O cineasta inglês Ken Loach, tão perspicaz em “auscultar” a sociedade capitalista, parodia os tempos atuais, magistralmente, em seu mais recente trabalho Sorry we missed you. Estamos lá, na aflição do ex-operário da construção civil, desalentado pelo desemprego, buscando uma salvação de vida para ele e sua família. É emblemático o diálogo que inicia a película entre Ricky Turner, a voz de quem perdeu a credulidade no sistema, e Gavin Maloney, a fala de quem aderiu à lógica neoliberal do “empreendedor de si” prometida por uma plataforma de entregas.

Ricky diz querer trabalhar sozinho agora – “ser meu próprio chefe” – e que não aceita o seguro-desemprego, sinal de fraqueza, por isso diz; “Prefiro morrer de fome.” Gavin gosta do que ouve, chama o ex-operário de guerreiro e passa a “fazer uns esclarecimentos”: “Aqui você não é contratado, você embarca (to board). Você não trabalha para nós, trabalha conosco. Não dirige para nós, presta serviço. Não temos contrato de emprego. Não há metas a cumprir, você alcança o Padrão de Entrega. Não há salário, há honorários. Você não bate ponto, fica à disposição.” E finaliza: “Você é senhor do seu destino. Isso separa os perdedores dos guerreiros.”

Saber o que nos acontece não é tarefa fácil nem se esgota aqui e agora. Sociólogos, filósofos, historiadores, psicanalistas, jornalistas e outros profissionais e estudiosos se debruçam sobre a era atual.

Alguns indicam, como a psicanalista Nora Merlin – docente e pesquisadora da Universidade de Buenos Aires, mestre em Ciências Políticas e autora dos livros “Populismo e Psicoanálisis”, “La colonización de la Subjetividad, médios massivos de comunicación em la época del biomercado”, “Mentir y colonizar: obediencia inconsciente en la subjetividad neoliberal” e “La reinvención democrática. Un giro afectivo”, todos editados pela Letra Viva –, diz  que o neoliberalismo é uma produção de subjetividade, de um homem “novo” e que, portanto, requer uma nova antropologia. Nora nos concedeu, gentilmente, uma entrevista desde Buenos Aires. Neste texto, vamos trazer e dialogar com as falas de Nora com o intuito de ajudar na reflexão dos nossos tempos para evitarmos o pior.

É, sem dúvida, uma pista para entender passividades como a que vimos, no Brasil, em 2017, na contrarreforma trabalhista, onde mais de 100 direitos foram retirados e tantos outros alterados da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Nora questiona que, mesmo sendo um dispositivo que só favorece a elite e retira direitos, o neoliberalismo têm avançado “profundamente no mundo, até ser definido como uma forma de vida”. Ela propõe uma reflexão sobre o porquê, desde os anos 1970, essa política se impõe e observa que “isso só é possível colonizando a subjetividade, com a manipulação dos afetos, como a angústia, a culpa, o medo, o ódio”.

Na linha de frente dessa manipulação, Nora destaca os meios de comunicação, as redes sociais e as políticas de educação e saúde mental e também as ciências biológicas capturadas pela indústria da medicalização. “O neoliberalismo não é possível sem essa colonização, que responde pela obediência inconsciente”, frisa. Ela traz o filósofo e humanista francês Étienne de La Boétie (1530-1563), vindo do século XVI, para “conversar” com a gente, 500 anos depois.

Ele pensou a sociedade na época dos absolutismos reais e alcunhou a expressão “servidão voluntária”1. “Ele se perguntava por que muitos se submetiam ao rei. A explicação naquele momento foi teológica: o rei é o herdeiro de Deus e, então, há de servi-lo e obedecê-lo. Era uma obediência consciente e voluntária. Depois, vieram as revoluções democráticas, os princípios de igualdade, liberdade e fraternidade. Hoje, estamos frente ao mesmo problema, porque os muitos se submetem a um, porém já não ao poder real do rei, mas sim ao poder real que hoje são as corporações. A servidão já não é sequer registrada como servidão porque estamos na presença de cidadãos que se creem livres. Além disso, o cidadão no neoliberalismo não tem comida e casa garantidas, não tem direitos. Então, por que tomamos atitudes que vão contra nossos próprios interesses?”, questiona.

Os trabalhadores perdem seus direitos, seu trabalho, mas seguem comprando e consumindo um discurso contra eles mesmos e que está a favor do capitalismo financeiro, que prescinde de homens e mulheres. “Os trabalhadores seguem subscrevendo e comprando como naturalizado esse discurso que logrou captar o coração da subjetividade.”

II – Meritocracia: a supremacia do eu

A meritocracia se fortalece na ideologia neoliberal. Uma narrativa que encontramos todos os dias nos mais diversos meios e em variadas formas. Ela está nas notícias da imprensa comercial, em postagens de empresas e especialistas de recursos humanos e recrutadores, em profusão, nas redes sociais, em especial na chamada rede de networking, o LinkedIn. Está em muitas falas políticas e nas diversas esferas dos poderes republicanos – Executivos, Legislativos e Judiciário.

Esses discursos disseminam a sensação de liberdade ilimitada, no sentido da onipotência do eu. “Eu faço o que quero.” Todavia, esclarece Nora que o eu é um lugar de desconhecimento. É uma instância psíquica que não está livre, mas está condicionada por imperativos, pulsões, pelo mundo social. “Não é um lugar de liberdade, mas há condicionamentos sociais, políticos, familiares, históricos que condicionam essa suposta liberdade do eu.”

A produção cultural do capitalismo contemporâneo, criadora do culto à liberdade do eu (ou individual), se ampara grandemente em técnicas de autoajuda e do marketing que funcionam como imperativos sociais também. “Por exemplo, as frases “você pode” e “você pode mais” simulam um ideal de liberdade, mas impõem os piores e ilimitados sacrifícios. O que isso gera? Uma subjetividade culpada, devedora”, descreve Nora Merlin. Para ela, a ovacionada “liberdade individual” é uma armadilha do sistema, porque nada se faz sozinho.

Falsamente, observa a psicanalista argentina, o neoliberalismo nos faz crer que somos donos das nossas vidas e do nosso destino, reforçando palavras que hoje estão no dia a dia das pessoas, como meritocracia, mérito, empreendedorismo, empreendedor de si. “Isso contribui para uma precariedade laboral, para um servilismo jamais visto, a pobreza como destino porque não há nenhuma mobilidade social baseada na meritocracia”, critica.

Isso porque a meritocracia, como discurso do capitalismo contemporâneo, está baseada numa falsa premissa de igualdade de oportunidades, quando ela só existe no final, e não no começo. “Se se parte da igualdade na educação, na saúde, na habitação, depois sim pode haver uma singularidade no esforço pessoal. A meritocracia é classista no neoliberalismo, alcança uma posição quem nasce numa determinada classe social”, reforça Nora.

III – Prisão ideológica e calcanhar de Aquiles

A primeira-ministra do Reino Unido de 1979 a 1990, Margaret Thatcher, tem uma frase famosa onde diz, sobre a nova ordem capitalista, que “não existe mais alternativa. É isso que existe”. A dama de ferro sabia o que estava falando e já mostrava para todos o caminho servil que seria imposto à sociedade mundial. Como sair dessa prisão ideológica é uma pergunta que não apenas faz Nora, mas todos nós. Neste ponto, Nora recorre a Michel Foucault (1926-1984), lembrando que o filósofo francês apontou que o neoliberalismo vinha com um slogan perigoso e falso do fim da história e das ideologias, ao mesmo tempo que rechaça a política. “Se acaba com a política porque dizem que o moderno é uma questão de administração. O neoliberalismo se transformou num sistema de administração das almas, do terror. Através de controle e do disciplinamento”, expõe.

O calcanhar de Aquiles do neoliberalismo é justamente a política, por isso a demonizam tanto, vinculam-na à corrupção, à violência. A saída, enfatiza Nora Merlin, só pode ser política, é a organização da sociedade, porque os ideólogos neoliberais sabem que nesse campo da disputa e reflexão de ideias eles não têm nada a dizer.

IV – Manipulação da angústia

Não é à toa, portanto, o ataque às organizações políticas e, principalmente, aos sindicatos de trabalhadores, porque é neles que “vamos poder encontrar a saída para a humanidade”. O poder trabalha com alguns sentimentos há muito tempo, “diria que mesmo antes do nazismo. Um dos afetos que mais manipulam é o da angústia, porque significa desamparo, indefinição, e isso traz a obediência inconsciente. Trabalha-se com o medo, a ameaça, a culpa e o ódio. Essas são as ‘paixões’ privilegiadas do neoliberalismo”, analisa.

Outras paixões também são usadas, como a uniformidade de pertencer a uma massa, de pertencer de forma imaginária, e não real, pela via da identificação, de parecer a alguma coisa. “O poder não quer sindicalismo, não quer a organização dos trabalhadores. Um sindicalismo organizado e um conjunto de trabalhadores que façam política e tenham pensamento crítico. O poder quer uma cultura de individualidades, de indivíduos, são cidadãos, consumidores, “odiadores”, sem pensamento crítico que forma a massa. A massa está conformada sobretudo pelos meios de comunicação que são corporativos, não são democráticos e são empresas. Não são democráticos não apenas pela concentração econômica, mas pela concentração simbólica. Não há pluralidade de vozes, é um discurso único, agora temos as redes sociais para ajudar a propagar esse discurso. Tudo isso impõe formas de vida.”

Rechaçar a política, que significa o diálogo entre posições diferentes e não o aniquilamento do que é diferente de nós, significa que colocamos no lugar a intolerância, a violência moral e física.

A morte da política, sempre anunciada pelos cânones neoliberais, retorna à sociedade como ódio, como destruição física e moral. “É o homem lobo do homem, uma guerra de todos contra todos, já não se trata mais de adversários políticos, mas de uma guerra contra inimigos. Porque a política foi demonizada como corrupção. O conflito político se transformou em conflito moral, entre bons e maus. Há um estímulo ao ódio, a mesma técnica utilizada pelo nazismo do inimigo interno, da demonização, à época, contra o judeu, os ciganos, os gays, hoje contra os dirigentes sociais, Lula, Cristina [Kirchner], dirigentes políticos e sindicais. O ódio é a ferramenta principal do neoliberalismo porque é o modo de aniquilar as diferenças”, reflete Nora.

V – Um vírus chamado neoliberalismo

Nora Merlin lembra que Jacques Lacan (1901-1981), psicanalista francês, define o capitalismo como um discurso ilimitado. Ela entende que o capitalismo, na sua expressão neoliberal, é um discurso fanático. “Podemos dizer que é um vírus que foi tomando todos os aspectos da cultura, quase uma estrutura rizomática, que foi se metendo nas formas de vida, no corpo, nas relações sociais, amorosas, de amizade, laborais, foi tomando os governos. Então, foi tomando o coração da subjetividade”, compara.

Como ela mesma destaca, durante o ano de 2020, em razão da pandemia, apareceram distintas teorias por filósofos da moda de um “novo normal”, de uma civilização melhor, de uma humanidade mais solidária, com o surgimento de um novo paradigma. Mas nada disso se realizará por ordem do destino neoliberal, como exorta Nora Merlin: “O destino da humanidade vai depender da luta política por outras formas de vida. O que vemos é uma direita desinibida, o neofascismo que já não necessita sequer de simulacros democráticos. O que vemos surgir é uma ultradireita “odiadora”, antissocial, mas também vemos crescer uma oposição que luta, se organiza, que articula o feminismo, formas democráticas, nacionais e populares. Dessa luta vai depender o destino da humanidade.

1 LA BOÉTIE, Étienne de. Discurso da Servidão Voluntária.

Por: Rosângela Ribeiro Gil e Manuella Soarespara  Outras Palavras - São Paulo (SP) (Brasil) em 9 de fev de 2021 às 18:14

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

O Dente-de-Leão e o Viva a Velhice

  A belíssima lenda do  dente-de leão e seus significados Segundo uma lenda irlandesa, o dente-de-leão é a morada das fadas, uma vez que elas eram livres para se movimentarem nos prados. Quando a Terra era habitada por gnomos, elfos e fadas, essas criaturas viviam livremente na natureza. A chegada do homem os forçou a se refugiar na floresta. Mas   as fadas   tinham roupas muito chamativas para conseguirem se camuflar em seus arredores. Por esta razão, elas foram forçadas a se tornarem dentes-de-leão. Comentário do Blog: A beleza  do dente-de-leão está na sua simplicidade. No convívio perene com a natureza, no quase mistério sutil e mágico da sua multiplicação. Por isso e por muito mais  é que elegi o dente-de-leão  como símbolo ou marca do Viva a Velhice. Imagem  Ervanária Palmeira   O dente-de-leão é uma planta perene, típica dos climas temperados, que espontaneamente cresce praticamente em todo o lugar: na beira de estrada, à beira de campos de cultivo, prados, planícies, colinas e

‘Quem anda no trilho é trem de ferro, sou água que corre entre pedras’ – Manoel de Barros

  Dirigido pelo cineasta vencedor do Oscar, Laurent Witz, ‘Cogs’ conta a história de um mundo construído em um sistema mecanizado que favorece apenas alguns. Segue dois personagens cujas vidas parecem predeterminadas por este sistema e as circunstâncias em que nasceram. O filme foi feito para o lançamento internacional da AIME, uma organização de caridade em missão para criar um mundo mais justo, criando igualdade no sistema educacional. O curta-animação ‘Cogs’ conta a história de dois meninos que se encontram, literalmente, em faixas separadas e pré-determinadas em suas vidas, e o drama depende do esforço para libertar-se dessas limitações impostas. “Andar sobre trilhos pode ser bom ou mau. Quando uma economia anda sobre trilhos parece que é bom. Quando os seres humanos andam sobre trilhos é mau sinal, é sinal de desumanização, de que a decisão transitou do homem para a engrenagem que construiu. Este cenário distópico assombra a literatura e o cinema ocidentais. Que fazer?  A resp

Poesia

De Mario Quintana.... mulheres. Aos 3 anos: Ela olha pra si mesma e vê uma rainha. Aos 8 anos: Ela olha para si e vê Cinderela.   Aos 15 anos: Ela olha e vê uma freira horrorosa.   Aos 20 anos: Ela olha e se vê muito gorda, muito magra, muito alta, muito baixa, muito liso, muito encaracolado, decide sair mas, vai sofrendo.   Aos 30 anos: Ela olha pra si mesma e vê muito gorda, muito magra, muito alta, muitobaixa, muito liso muito encaracolado, mas decide que agora não tem tempo pra consertar então vai sair assim mesmo.   Aos 40 anos: Ela se olha e se vê muito gorda, muito magra, muito alta, muito baixa, muito liso, muito encaracolado, mas diz: pelo menos eu sou uma boa pessoa e sai mesmo assim.   Aos 50 anos: Ela olha pra si mesma e se vê como é. Sai e vai pra onde ela bem entender.   Aos 60 anos: Ela se olha e lembra de todas as pessoas que não podem mais se olhar no espelho. Sai de casa e conquista o mundo.   Aos 70 anos: Ela olha para si e vê sabedoria, ri

Saber ouvir 2 - Escutatória Rubem Alves

Sempre vejo anunciados cursos de oratória. Nunca vi anunciado curso de escutatória. Todo mundo quer aprender a falar... Ninguém quer aprender a ouvir. Pensei em oferecer um curso de escutatória, mas acho que ninguém vai se matricular. Escutar é complicado e sutil. Diz Alberto Caeiro que... Não é bastante não ser cego para ver as árvores e as flores. É preciso também não ter filosofia nenhuma. Filosofia é um monte de ideias, dentro da cabeça, sobre como são as coisas. Para se ver, é preciso que a cabeça esteja vazia. Parafraseio o Alberto Caeiro: Não é bastante ter ouvidos para ouvir o que é dito. É preciso também que haja silêncio dentro da alma. Daí a dificuldade: A gente não aguenta ouvir o que o outro diz sem logo dar um palpite melhor... Sem misturar o que ele diz com aquilo que a gente tem a dizer. Como se aquilo que ele diz não fosse digno de descansada consideração...   E precisasse ser complementado por aquilo que a gente tem a dizer, que é muito melhor. N

O Envelhescente por Mário Prata

Se você tem entre 50 e 70 anos, preste bastante atenção no que se segue.  Se você for mais novo, preste também, porque um dia vai chegar lá. E, se já passou, confira. Sempre me disseram que a vida do homem se dividia em quatro partes: infância, adolescência, maturidade e velhice. Quase correto. Esqueceram de nos dizer que entre a maturidade e a velhice (entre os 50 e os 70), existe a ENVELHESCÊNCIA. A envelhescência nada mais é que uma preparação para entrar na velhice, assim com a adolescência é uma preparação para a maturidade . Engana-se quem acha que o homem maduro fica velho de repente, assim da noite para o dia. Não. Antes, a envelhescência. E, se você está em plena envelhescência, já notou como ela é parecida com a adolescência? Coloque os óculos e veja como este nosso estágio é maravilhoso: — Já notou que andam nascendo algumas espinhas em você? — Assim como os adolescentes, os envelhescentes também gostam de meninas de vinte anos. — Os adolescentes mudam a voz. Nós, envelhesce