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População idosa negra e covid-19: por que invisibilizar e negar direitos?


Um dos mais preocupantes movimentos políticos observados nesses últimos meses, e muito acentuado com a chegada da pandemia da covid-19, foi o aumento da invisibilidade de diversos grupos sociais. Essa invisibilidade retira os direitos à cidadania plena e coloca essas pessoas, muitas vezes, sem o direito de viver, de respirar.

E há um outro ator social, chamado governo, que deixa morrer por meio de suas ações, omissões e discursos.

Boletim nº 10 – Direitos na Pandemia, recentemente lançado, comprova isso. Segundo a Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra por Domicílios), a população negra brasileira já é, ou está muito próxima de ser, a maioria na faixa etária acima dos 60 anos.

Dos 32 milhões de idosos do país estimados em 2018, 48% (quase 15,5 milhões) compõem a população negra, sendo 8,8% (quase 3 milhões) de pessoas idosas pretas, e 39,2% (um pouco mais de 12,5 milhões) de pessoas idosas pardas.

O inquérito “Idosos do Brasil II”, publicado pelo Sesc (Serviço Social do Comércio) e Fundação Perseu Abramo, em agosto de 2020, corrobora: o número de idosas e idosos negros já ultrapassa o percentual de 50% da população de velhos e velhas.

O índice de envelhecimento brasileiro, que é a proporção entre pessoas com 60 anos ou mais e jovens de até 15 anos, vem mudando a cada ano, mostrando um Brasil que envelhece, mas ainda de forma muito desigual em todo o território nacional.

Pessoas negras e brancas têm participações diferentes nessa mudança demográfica e desafios particulares presentes como manter-se ativo num país cada dia mais conectado à internet ou como obter os alimentos cada vez mais caros da cesta básica, como arroz e feijão.

Enquanto isso, outros problemas sociais e históricos vão se acumulando na vida de muitas pessoas idosas. Mulheres negras continuam preteridas nos relacionamentos conjugais, trabalhando mais na informalidade; o genocídio de jovens negros não para de aumentar —o que só reduz as chances de redes de apoio àqueles que sobrevivem e envelhecem.

Idade, cor da pele, gênero, deficiência e tipo de moradia não deveriam ser critérios de maior ou menor possibilidade para envelhecer bem.

Dados publicados em 2017 e 2019, a partir do estudo populacional Saúde, Bem Estar e Envelhecimento (SABE) com idosos e idosas do município de São Paulo, mostraram que a população idosa negra sofre com as discriminações decorrentes do racismo e do etarismo, dificultando as condições de vida e de saúde.

Têm mais dificuldade para um diagnóstico precoce e tratamento completo e, mesmo com comorbidades e incapacidades funcionais presentes, ainda precisam trabalhar.

O cenário se reflete nos grupos específicos de pessoas idosas negras colocadas em maior situação de vulnerabilidade durante a pandemia de covid-19: cuidadoras informais, domésticas, em situação de rua, privadas de liberdade, quilombolas, residentes de favelas e cortiços, sozinhas e institucionalizadas.

São essas pessoas que não puderam exercer o mesmo direito de pessoas idosas brancas de respirar sem o risco aumentado de morrer.

E precisamos aguardar o impacto de doentes e mortos decorrentes da covid-19 na vida de quem perdeu um ente querido, na nossa demografia, nas nossas relações sociais e, só depois, na nossa economia. Não é o inverso.

Boa parte dos gestores municipais e estaduais não divulgam seus boletins epidemiológicos apresentando como e quanto de idosos e idosas negras adoecem e morrem pela covid-19.

Trata-se de uma determinação social de vida que sempre gerou maior vulnerabilização. As crises sanitária, política, econômica e os conflitos raciais somaram-se ao caos que a pandemia trouxe e que se traduz em adoecimento físico ou mental e mais mortes por causas naturais.

Quando a morte no grupo de pessoas negras é maior do que outros grupos étnicos ou raciais, a pergunta que se coloca é o quanto dessas mortes a mais, desiguais e injustas não põe ainda mais em xeque a possibilidade de envelhecer, e de envelhecer bem, seguindo os princípios da Política para um Envelhecimento Ativo?

Diante desse cenário, é importante questionar o Estado e responsabilizá-lo. Como, em tempos de pandemia, um grupo tão representativo e dos mais acometido pelos fatores de risco para adoecimento e mortalidade por covid-19: velho, de pele escura e com comorbidades associadas continua invisibilizado?

Não caberia maior cuidado, por meio de ações das equipes da Atenção Primária de Saúde, como monitoramento das pessoas negras velhas?

Está no momento de revertermos os determinantes socioeconômicos, ambientais e culturais que, até os dias de hoje, restringem qual grupo social envelhecerá naturalmente, sem grandes e injustos estresses financeiros e sociais para sobrevivência.

Pessoas negras que com mais de 60 anos trazem contribuições sem fim para suas famílias, comunidades, para a sociedade, e ainda não tiveram o devido reconhecimento de sua importância e contribuição para formação deste país.

Caberia ao Estado a proposição de ações e programas urgentes para a proteção das vidas de pessoas idosas negras.

São elas que remetem a uma ancestralidade que nós, enquanto sociedade, estamos deixando de valorizar, de enaltecer e de reconhecer. São essas mesmas pessoas idosas, negras, brancas, amarelas ou indígenas, que originaram nossas raízes e, culturalmente ou geneticamente, nos constituem como pessoa.  
Fonte: www.uol.com.br/vivabem/

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