Pular para o conteúdo principal

Queremos morrer velhos, mas não 'de velhice'

 Tratar velhice como doença é erro que alimenta utopia da juventude eterna

Alexandre Kalache

Médico gerontólogo, presidente do Centro Internacional de Longevidade no Brasil (ILC-BR)​

Carlos André Uehara

Presidente da Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia

Quando morre uma figura famosa, a causa de morte ganha proeminência. Foi assim quando Ronald Reagan e Margaret Thatcher morreram de doença de Alzheimer; Greta Garbo e Ingrid Bergman de câncer da mamaGeorge Bush e Muhammad Ali de doença de Parkinson; e Rock Hudson e Cazuza de Aids.

Há muitos outros exemplos. Ainda que de forma involuntária, eles serviram de alerta para doenças de importância até então pouco reconhecida e a humanidade lhes agradece postumamente.

No último mês de abril, faleceu o Duque de Edimburgo. Declaradamente, não de uma doença e sim de "velhice". Não importou que meses antes ele tivesse sido hospitalizado por problemas cardiovasculares: depois de morrer, ele ingressou no rol das mortes por "velhice".

mãos de idosos movimentam peças de dominó
A classificação da "velhice" como achado clínico ou sintoma alimenta adeptos do antienvelhecimento - Eduardo Knapp - 07.jul.2017/Folhapress

É comum no dia a dia dizer que alguém morreu por ser muito idosa. De velhice. É até compreensível. Mas quando o rótulo alimenta estatísticas, torna-se preocupante.

É bem diferente morrer “de velho” do que de enfermidades associadas ao envelhecimento, como são a maioria delas. No Brasil, cerca de 75% das mortes são em decorrência das doenças crônicas não transmissíveis, e mais de 70% das mortes se dão após os 60 anos.

Se o código “velhice” passa a ser adotado, nós rapidamente perderemos a real dimensão que tais doenças têm para a adoção de políticas públicas em resposta ao rápido envelhecimento global.

Ao invés de darmos proeminência a enfermidades que podem ser prevenidas, tratadas ou postergadas, correremos o risco de tê-las mascaradas por algo impreciso e mal definido. Afinal, o que é "velhice"? Para a OMS, ela começa aos 60. Aonde chegaríamos em 10, 20 anos constatando que um número crescente de mortes poderia receber um código tão impreciso.

Comparações internacionais se tornariam distorcidas. Um país onde morrer de velhice fosse mais frequente que por doenças com nome e apelido teria serviços de saúde melhores? Seria também impossível ter uma visão longitudinal em um mesmo país —estaria evoluindo? Como medir o peso verdadeiro de doenças que se tornam mais frequentes com o envelhecimento, exigindo intervenções eficazes, baseadas em evidência?

Face a uma verdadeira epidemia de diagnósticos de "velhice", quais políticas públicas seriam propostas e implementadas? Do ponto de vista funcionalista, em que o valor dos indivíduos provém da função e seu trabalho, não é difícil imaginar soluções mágicas que surgiriam.

Estamos, no entanto, na iminência de oficializar essa aberração com a entrada em vigor da 11ª versão da Classificação Internacional de Doenças. Ela é usada por profissionais da saúde como referência não só para os atestados de óbito, mas quaisquer intervenções na área da saúde.

Os efeitos nefastos não param aí. Há imensos interesses econômicos, ligados à indústria "anti-ageing". Os últimos dados a que tivemos acesso, de 2014, mostram que somente naquele ano nos EUA ela movimentou US$ 37 bilhões.

O apelo de beber da fonte da eterna juventude foi sempre tão irresistível como fútil. E em nosso país, hedonista e idadista, tal apelo é ainda maior.

A classificação da "velhice" como achado clínico ou sintoma alimentará ainda mais os adeptos do antienvelhecimento. A comercialização da “cura da velhice” será impulsionada e os lucros dos vendedores de sonhos aumentarão.

Se o código MG2A (velhice) for realmente endossado estaremos diante de uma avalanche de velhos morrendo de "velhice". E incalculáveis recursos canalizados para a alimentar a velha utopia de juventude para sempre.

Nós, coautores desta coluna, queremos sim morrer velhos —mas não de "velhice".

Fonte: www1.folha.uol.com.br/folha-100-anos/2020/08/

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

O Dente-de-Leão e o Viva a Velhice

  A belíssima lenda do  dente-de leão e seus significados Segundo uma lenda irlandesa, o dente-de-leão é a morada das fadas, uma vez que elas eram livres para se movimentarem nos prados. Quando a Terra era habitada por gnomos, elfos e fadas, essas criaturas viviam livremente na natureza. A chegada do homem os forçou a se refugiar na floresta. Mas   as fadas   tinham roupas muito chamativas para conseguirem se camuflar em seus arredores. Por esta razão, elas foram forçadas a se tornarem dentes-de-leão. Comentário do Blog: A beleza  do dente-de-leão está na sua simplicidade. No convívio perene com a natureza, no quase mistério sutil e mágico da sua multiplicação. Por isso e por muito mais  é que elegi o dente-de-leão  como símbolo ou marca do Viva a Velhice. Imagem  Ervanária Palmeira   O dente-de-leão é uma planta perene, típica dos climas temperados, que espontaneamente cresce praticamente em todo o lugar: na beira de estrada, à beira de campos de cultivo, prados, planícies, colinas e

‘Quem anda no trilho é trem de ferro, sou água que corre entre pedras’ – Manoel de Barros

  Dirigido pelo cineasta vencedor do Oscar, Laurent Witz, ‘Cogs’ conta a história de um mundo construído em um sistema mecanizado que favorece apenas alguns. Segue dois personagens cujas vidas parecem predeterminadas por este sistema e as circunstâncias em que nasceram. O filme foi feito para o lançamento internacional da AIME, uma organização de caridade em missão para criar um mundo mais justo, criando igualdade no sistema educacional. O curta-animação ‘Cogs’ conta a história de dois meninos que se encontram, literalmente, em faixas separadas e pré-determinadas em suas vidas, e o drama depende do esforço para libertar-se dessas limitações impostas. “Andar sobre trilhos pode ser bom ou mau. Quando uma economia anda sobre trilhos parece que é bom. Quando os seres humanos andam sobre trilhos é mau sinal, é sinal de desumanização, de que a decisão transitou do homem para a engrenagem que construiu. Este cenário distópico assombra a literatura e o cinema ocidentais. Que fazer?  A resp

Poesia

De Mario Quintana.... mulheres. Aos 3 anos: Ela olha pra si mesma e vê uma rainha. Aos 8 anos: Ela olha para si e vê Cinderela.   Aos 15 anos: Ela olha e vê uma freira horrorosa.   Aos 20 anos: Ela olha e se vê muito gorda, muito magra, muito alta, muito baixa, muito liso, muito encaracolado, decide sair mas, vai sofrendo.   Aos 30 anos: Ela olha pra si mesma e vê muito gorda, muito magra, muito alta, muitobaixa, muito liso muito encaracolado, mas decide que agora não tem tempo pra consertar então vai sair assim mesmo.   Aos 40 anos: Ela se olha e se vê muito gorda, muito magra, muito alta, muito baixa, muito liso, muito encaracolado, mas diz: pelo menos eu sou uma boa pessoa e sai mesmo assim.   Aos 50 anos: Ela olha pra si mesma e se vê como é. Sai e vai pra onde ela bem entender.   Aos 60 anos: Ela se olha e lembra de todas as pessoas que não podem mais se olhar no espelho. Sai de casa e conquista o mundo.   Aos 70 anos: Ela olha para si e vê sabedoria, ri

Saber ouvir 2 - Escutatória Rubem Alves

Sempre vejo anunciados cursos de oratória. Nunca vi anunciado curso de escutatória. Todo mundo quer aprender a falar... Ninguém quer aprender a ouvir. Pensei em oferecer um curso de escutatória, mas acho que ninguém vai se matricular. Escutar é complicado e sutil. Diz Alberto Caeiro que... Não é bastante não ser cego para ver as árvores e as flores. É preciso também não ter filosofia nenhuma. Filosofia é um monte de ideias, dentro da cabeça, sobre como são as coisas. Para se ver, é preciso que a cabeça esteja vazia. Parafraseio o Alberto Caeiro: Não é bastante ter ouvidos para ouvir o que é dito. É preciso também que haja silêncio dentro da alma. Daí a dificuldade: A gente não aguenta ouvir o que o outro diz sem logo dar um palpite melhor... Sem misturar o que ele diz com aquilo que a gente tem a dizer. Como se aquilo que ele diz não fosse digno de descansada consideração...   E precisasse ser complementado por aquilo que a gente tem a dizer, que é muito melhor. N

O Envelhescente por Mário Prata

Se você tem entre 50 e 70 anos, preste bastante atenção no que se segue.  Se você for mais novo, preste também, porque um dia vai chegar lá. E, se já passou, confira. Sempre me disseram que a vida do homem se dividia em quatro partes: infância, adolescência, maturidade e velhice. Quase correto. Esqueceram de nos dizer que entre a maturidade e a velhice (entre os 50 e os 70), existe a ENVELHESCÊNCIA. A envelhescência nada mais é que uma preparação para entrar na velhice, assim com a adolescência é uma preparação para a maturidade . Engana-se quem acha que o homem maduro fica velho de repente, assim da noite para o dia. Não. Antes, a envelhescência. E, se você está em plena envelhescência, já notou como ela é parecida com a adolescência? Coloque os óculos e veja como este nosso estágio é maravilhoso: — Já notou que andam nascendo algumas espinhas em você? — Assim como os adolescentes, os envelhescentes também gostam de meninas de vinte anos. — Os adolescentes mudam a voz. Nós, envelhesce