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Os Noventa, de Rachel de Queiroz

Há pessoas que sentem muita pena de não terem conhecimento dos segredos do futuro. Eu não. Este mundo atual já é tão rico de promessas, mas também de ameaças, que chego a dar graças a Deus por estes 90 anos já cumpridos.

Por que as dezenas são importantes, a gente não sabe muito bem. Mas sempre procuro dar uma explicação a cada dezena de anos que completo. Desde os 50. Talvez seja uma maneira de fugir ao impulso natural de negar a idade quando ela nos parece excessiva. Talvez uma defesa também: se eu proclamo a minha idade ninguém se interessará em alegá-la contra mim. Cinquenta, 60, 70, 80 e agora estes antipáticos 90. Não estou achando a menor graça: e lá dentro do meu coração, eu sinto que estes 90 anos são uma injustiça imerecida.

A gente devia ter o direito de escolher a sua idade. Por exemplo, quando tenho no colo meu bisneto Pedro, que é um irreprimível aventureiro, sinto que o entendo, partilho das suas brincadeiras, me arrisco pelos caminhos que ele sugere. E realmente, com Pedro no colo, sinto que tenho quase a idade dele. Mas junto aos meus velhos amigos, já octogenários, ou mesmo nonagenários, sinto-me como se fosse o próprio Matusalém. Partilho dos problemas deles, das suas indignações, de suas cóleras contra o regime e o poder. Fazendo essas confissões ocorre-me, de repente, que sou uma pessoa de resistência muito frágil ao seu meio e às suas circunstâncias. Verdade que quase sempre sou do contra, embora um contra ameno, cordial, quase uma adesão.

Quando jovem, pregava revoluções e mudanças, me apaixonava contra os poderosos. Mas à medida que fui envelhecendo, o meu grande amor pelo gênero humano sobreleva todos os demais sentimentos. Quando jovem, a gente tem pelo próximo o interesse que é mais curiosidade, descoberta e até um pouco de ressentimento. À medida que o tempo passa, a gente abranda. Conhecendo melhor as próprias fraquezas, procura entender as fraquezas dos outros. E vê-los cometer atos de intolerância e hostilidade, a gente tira o desconto e em vez de hostilizar, procura entender. Creio que a melhor qualidade da velhice é a compreensão, até mesmo a condescendência com o que nos pareça erro nos outros. E quando esses erros partem de uma pessoa amada, nossa tentativa de compreensão se duplica: o importante naquela pessoa, para nós, é o amor que lhe temos e não o seu comportamento.


O amor dos velhinhos por filhos e netos, às vezes detestáveis, se justifica precisamente pelo amor que lhes dedicamos. Amor que eles não fizeram nada por conquistar, mas que nós lhes oferecemos às mãos cheias e, principalmente, vindo do fundo do coração. Engraçado é que as cóleras e os ressentimentos também se aliviam. Será que, ao envelhecermos, ficamos mais frágeis, nossos ombros já não aguentam o peso dos ressentimentos? E muitas vezes nos surpreendemos a descobrir numa pessoa de quem não gostávamos, qualidades ou virtudes que, anos atrás, jamais lhe admitiríamos. O esquecimento, o amadurecimento e, para dizer uma palavra bonita, o perdão. Poucos dias atrás nos cruzamos de novo. Eu ia com pressa, mas lhe fiz um gesto amistoso e ele correspondeu com tanta cortesia como o faria um amigo do peito.

A gente se pergunta se este alívio dos ressentimentos é efeito da memória desgastada ou de um abrandamento do coração. Talvez sejam as duas coisas: como o ressentimento se esvaiu com o passar do tempo, o coração não teve mais estímulo para reagir. Aliás, esse desgaste do tempo que se reflete também na face do seu ex-inimigo, deve igualmente se refletir na própria face, aos olhos dele. E a cordialidade que mostra talvez derive da constatação dele: “Meu Deus, como a Rachel está velha e diferente! Coitada!”

É assim que acontece. O seu coração só guarda aqueles ressentimentos gravíssimos, os que não têm perdão. O resto vai embora, lavado pelo tempo.

Em compensação quanta coisa boa nos ocorre de repente, boiando à flor da memória. Um sorriso, um gesto, um carinho. Aquela pessoa que você imaginava hostil, de repente se aproxima e lhe dá um beijo no rosto. De graça, sem provocação da sua parte. E aquela gratuidade lhe dá uma sensação de prêmio; é como se você, passando num jardim, visse na sua mão a mais bela flor. Os gestos espontâneos quase sempre são inesperados. E com esse elemento de surpresa é que nos conquistam a gratidão.

Há pessoas que sentem muita pena de não terem conhecimento dos segredos do futuro. Eu não. Este mundo atual já é tão rico de promessas, mas também de ameaças, que chego a dar graças a Deus por estes 90 anos já cumpridos. Quer pela falta de tempo a decorrer depois destes 90 anos, as surpresas serão poucas, quer as boas, quer as más.

Fonte: http://mundoprateado.com/osnoventa/

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