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O coronavirus, nós e o mundo

Como será o mundo depois do coronavírus, segundo Yuval Noah Harari


Uma das personalidades intelectuais mais influentes dos últimos anos, o historiador israelense Yuval Noah Harari, acaba de publicar no jornal inglês Financial Times uma exortação aos governos mais poderosos do planeta, com o objetivo de sacudir a cidadania: não são tempos para pensar em termos de nacionalismo, nem de vantagens de saúde monopolísticas, mas para agir mais globalmente do que nunca. E com responsabilidade. Porque “as decisões que os governos e os povos tomarem, nas próximas semanas, provavelmente moldarão o mundo que teremos nos próximos anos. Não apenas formatarão nossos sistemas de saúde, mas também nossa economia, política e cultura, devemos agir com rapidez e com decisão”, argumenta o autor de "Sapiens: de Animais a Deuses, Uma Breve História da Humanidade".


A reportagem é de Matilde Sánchez, publicada por Clarín-Revista Ñ, 21-03-2020. A tradução é do Cepat.


Uma palavra sobre a trajetória meteórica de Yuval Noah Harari. Esse jovem historiador encarna a nova estirpe de intelectuais de alta divulgação, eficazes para atravessar de maneira transversal todas as instituições, influenciando políticos, audiências e acadêmicos ao mesmo tempo, com um discurso e conceitos suficientemente planos e significativos. Professor da Universidade Hebraica de Jerusalém e o palestrante mais bem pago do mundo (apresentado por somas de seis dígitos e uma sofisticada estratégia de comunicação que inclui visitas a outras personalidades), foi impondo-se como uma referência séria nas universidades de todo o mundo a partir desse canal próprio, que são seus livros. De fato, é o autor de um sucesso editorial único.


Nos ensaios Sapiens: de Animais a Deuses, Uma Breve História da Humanidade, postula que a história tem um sentido, e que isso se desdobra como história da progressiva unificação dos diferentes ramos da espécie humana, amalgamados por seu espírito de cooperação e os mitos que foi capaz de criar graças à linguagem.


Para Harari, nosso mito dominante atual e por vários séculos é o da Liberdade, que funda, entre outras instituições, a democracia ocidental. De fato, existe hoje uma profunda mudança de paradigma desde a chegada dos algoritmos. Para Harari, no entanto, continuamos cativos de nossa biologia e genética. Não estamos tão longe desse Homo sapiens que com tanta beleza concebeu Stanley Kubrick, em uma Odisseia no Espaço, quando o primata evoluído descobriu uma ferramenta para atacar e enfrentava sua primeira pergunta existencial ao confrontar-se com o enigmático monólito. Estamos ligados à nossa genética, mas precisamos da história de nossa liberdade.






Em “O mundo após o coronavírus”, Harari alerta que o primeiro dilema é entre a vigilância totalitária e o empoderamento dos cidadãos, o segundo desafio é entre o isolamento nacionalista e a solidariedade global.


Harari defende que a tempestade da pandemia passará, sobreviveremos, mas será outro planeta, já que muitas das medidas atuais de emergência deverão ser estabelecidas como rotinas fixas: “essa é a natureza das emergências, aceleram os processos históricos em fast forward”. “As decisões que em tempos normais levam anos de deliberação são tomadas em poucas horas”, explica. As tecnologias perigosas e imaturas entram rapidamente em vigor, porque os riscos de inação são piores. Países inteiros já funcionam como cobaias para experimentos sociais em larga escala. O que acontece quando todos trabalhamos em casa e só temos comunicação remota? O que acontece quando todas as escolas e universidades trabalham online?” Essas são perguntas que a população mundial está fazendo neste momento, do médico ao trabalhador de escritório, do empresário ao professor.


Falamos sobre um controle biológico neste momento, segundo ele, uma “vigilância subcutânea” para deter a epidemia. Pela primeira vez na história, os governos hoje têm a capacidade de monitorar toda a sua população ao mesmo tempo e em tempo real, um dispositivo que nem a KGB soviética conseguiu em um único dia. Os governos de hoje conseguem isso com sensores onipresentes e poderosos algoritmos, como demonstrou a China, monitorando a população por meio de telefones celulares e câmeras de reconhecimento facial.






A questão, nos alerta, é se os dados de suas reações serão usados politicamente para saber como respondem as emoções do eleitorado a certos estímulos: em outras palavras, para manipular grandes massas. Agora, vários aplicativos na China alertam ao portador de um celular que está perto de uma pessoa infectada: a que suposto perigo poderiam nos alertar também? Esses tipos de tecnologias não se limitam à ÁsiaHarari nos lembra que, recentemente, o primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu autorizou a Agência de Segurança a usar tecnologia anteriormente restrita a combater terroristas para rastrear pacientes com coronavírus, isso foi feito através de um determinante “decreto de emergência” que rejeitou as objeções da oposição no Parlamento.


Em outras palavras, a tecnologia de vigilância em massa que antes assustava muitos governos poderá ser usada regularmente: não mais um controle “sobre a pele”, mas “sob a pele”. Os políticos terão muitas informações sobre o que nos provocam tristeza, tédio, alegria e euforia. Isso representa um poder sobre as populações sem precedentes e arriscado.


Por outro lado, no entanto, foi demonstrado que o monitoramento centralizado e a punição severa não são a maneira mais eficaz de alcançar o cumprimento das regras que poderiam nos salvar. Uma população motivada em sua própria saúde e bem informada é a única chave. De fato, esse é o grande ensinamento da política do uso do sabão, que não exige que um Big Brother (Grande Irmão) assista toda hora: o hábito do sabão precede todos os regulamentos, é um tipo de legado familiar de longo ciclo histórico.



A chave da cooperação


O historiador adquire sua posição de filósofo ao insistir na centralidade das histórias comuns às civilizações, por exemplo, de costumes higiênicos. Para atingir esse nível de cumprimento e colaboração no bem comum, é necessária confiança na ciência, nas autoridades públicas e nos meios de comunicação. “Nos últimos anos, políticos irresponsáveis minaram deliberadamente a confiança na ciência, nas autoridades e nos meios de comunicação”, afirma. Agora, esses mesmos políticos poderão ficar tentados a seguir o caminho mais rápido para o autoritarismo, com o argumento que não se pode confiar que o público faça a coisa certa”, adverte.






Normalmente, a confiança que foi corroída por anos não pode ser reconstruída da noite para o dia. Mas estes não são tempos normais. “Em vez de construir regimes de vigilância, não é tarde para recuperar a confiança do povo na ciência, nas autoridades e nos meios de comunicação”.


Definitivamente, devemos empregar novas tecnologias também. Mas estas deveriam empoderar os cidadãos. “Sou muito a favor de monitorar a temperatura corporal e a pressão sanguínea, mas esses dados não devem ser usados para criar um governo todo-poderoso, devem me permitir tomar decisões pessoais mais bem informadas e também deveria fazer com que o governo preste conta de suas decisões”, escreve.


“Se eu pudesse controlar minha condição clínica 24 horas por dia, saberia se me tornei um risco para os demais e também saberia quais hábitos ajudam minha saúde. E poderia acessar e analisar estatísticas confiáveis sobre a disseminação do coronavírus, avaliar melhor se o governo está nos dizendo a verdade e se está tomando as medidas apropriadas para combater a epidemia. Quando as pessoas falam sobre vigilância, é preciso ter presente que essa mesma tecnologia que o governo usa para monitorar indivíduos pode ser usada por indivíduos para monitorar o governo”.


“O coronavírus é um teste superlativo para os cidadãos, dado que nos próximos dias cada um de nós terá que decidir se deve confiar em informações científicas e especialistas em saúde ou, pelo contrário, em teorias infundadas de conspiração e em políticos interessados. Se não tomarmos a decisão certa – argumenta - poderemos abrir mão de nossas mais preciosas liberdades, acreditando que é assim que protegemos nossa saúde”.


No trecho mais vibrante de seu artigo, Harari exorta que tenhamos um plano global. Sua segunda premissa exige que escolhamos entre o isolamento nacionalista e a solidariedade global. Dado que tanto a epidemia, quanto a crise econômica são globais, e apenas poderão ser resolvidas com a cooperação global. Para derrotar a pandemia, precisamos compartilhar globalmente a informação, e essa é a grande vantagem dos seres humanos sobre os micro-organismos. A China pode ensinar muito aos Estados Unidos como combatê-lo. Enquanto o hesitante governo britânico decide entre privilegiar a economia e não a saúde pública, os coreanos têm muito a ensinar sobre a luta contra o coronavírus. Mas isso não pode ser alcançado sem o compartilhamento de informações.






“Precisamos de um espírito de cooperação e confiança”, nos alerta. E também da plena disposição internacional de produzir e distribuir equipamentos médicos, como kits de teste e respiradores. Assim como os países internacionalizam suas principais indústrias durante uma guerra, o combate contra o coronavírus exige “humanizar as indústrias comprometidas com o bem comum”.


Um protocolo global deveria permitir que equipes muito controladas de especialistas continuem viajando, cientistas, médicos, políticos e empresários retornando para casa com a experiência adquirida e a ajuda fornecida. Os líderes do G7 conseguiram finalmente, alguns dias atrás, organizar uma videoconferência, mas não conseguiram chegar a um acordo. A paralisia parece ter conquistado a comunidade internacional.


“A atual administração dos Estados Unidos recusou seu papel de líder global”, critica Harari. “Deixou claro que se importa muito mais com a grandeza dos Estados Unidos do que com o futuro da humanidade”. Abandonando até mesmo seus melhores aliados, escreve, o governo Trump escandalizou o mundo ao oferecer bilhões a um laboratório alemão para monopolizar a fórmula de uma vacina.


Se o vácuo deixado pelos Estados Unidos não for preenchido por outro país, será ainda mais difícil deter a pandemia. A humanidade está enfrentando um desafio histórico: adotamos o caminho da solidariedade global ou o da desunião, que apenas prolongará a crise?


Em 24/03/2020   Fonte para o Blog: http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/597364-como-sera-o-mundo-depois-do-coronavirus-segundo-yuval-noah-harari

Entrevista  original:  https://time.com/5803225/yuval-noah-harari-coronavirus-humanity-leadership/

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