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Os filhos, a velhice e a velhice e os filhos

Hoje, sexta-feira vamos falar de filmes?
Sim, mas com um artigo de Eliane Brum que a partir dos filmes  O Amor, O Quarteto, O Excêntrico Hotel Marigold e o E se vivêssemos  todos juntos? vai tecendo uma análise comportamental dos filhos e dos pais ante o processo de envelhecimento. Compõe esta análise os pontos fundamentais para uma velhice ativa, com amigos, com vida social e cultural, com habitação, com trabalho e recursos financeiros que  permita  viver a velhice com dignidade.
Aqui está:

Esses filhos perplexos diante da velhice dos pais

ELIANE BRUM - 15/04/2013

O cinema anuncia novos arranjos para o envelhecer e traz um olhar irônico sobre essa relação familiar quase sempre conflituosa
Uma sequência de filmes mostra que a velhice mudou – ou está mudando. Isso diz bastante sobre o aumento da expectativa de vida, já que um dos temas cruciais da sociedade contemporânea passa a ser como ser velho nestes tempos. E faz com que atores e atrizes sem muita chance de viver papéis desafiadores por conta da idade, muitos deles obrigados a uma aposentadoria não desejada, passem a ter a chance de interpretações magistrais, como foi o caso de Emmanuelle Riva e de Jean-Louis Trintignant, no excepcional Amor. Ou tem levado atores consagrados a se aventurar na direção depois dos 70, como fez Dustin Hoffman no encantador O Quarteto. São filmes em que a velhice é contada pelo olhar de quem a está vivendo e há várias formas de pensar sobre o que está sendo dito, dentro e fora da tela. Minha proposta é refletir sobre uma em particular: nos últimos quatro filmes exibidos por aqui e que já estão ou devem estar chegando às locadoras e às TVs por assinatura, os filhos ou estão ausentes ou são uns atrapalhados, oscilando entre a boçalidade e a incapacidade de dar conta da própria vida.   
Em O Excêntrico Hotel Marigold, o mais fraco deles, um dos casais britânicos vai parar na Índia porque a filha gastou o dinheiro dos pais numa aventura empreendedora na internet. Assim, precisam encontrar uma opção mais barata de moradia, o que os leva ao excêntrico hotel do título. Ainda que depois a opção se mostre interessante, mesmo que por caminhos tortuosos, não foi uma escolha num primeiro momento. E sim uma reação à atrapalhação da filha, que se arriscou não com o seu próprio dinheiro, mas (convenientemente) com o dos pais, o que também é uma marca da nossa época.  
No ótimo E se vivêssemos todos juntos?, a filha do casal interpretado por Jane Fonda e Pierre Richard é uma chata pretensiosa que só aparece para (tentar) mandar nos pais e dar palpite na vida deles, para em seguida desaparecer. Já o filho do Don Juan interpretado por Claude Rich é muito mais participativo e francamente esforçado, mas o pai tenta escapar de todo jeito das boas intenções filiais porque esse filho só é capaz de enxergá-lo como alguém que vai quebrar a qualquer momento – o que é verdade, mas está longe de ser toda a verdade.


Em Amor, a maravilhosa Isabelle Huppert está menos maravilhosa no papel de filha do casal que se descobre velho de repente, numa manhã qualquer, em um segundo. Esta personagem, às voltas com um casamento que parece emocionante apenas pelas razões erradas, encarna a filha perplexa diante dos pais. Perplexa e apavorada diante da fragilidade e da finitude dos pais. Ela tenta intervir, ela tenta se impor, ela tenta dizer e fazer coisas sensatas – e tudo falha. Ela tenta principalmente ser potente, mas mal dá conta da própria vida. Seu diálogo com o pai, enquanto a mãe não sabe de si, é uma das cenas antológicas desse filme belíssimo.  
Em O Quarteto, que se passa num “lar para velhos” que foram cantores e músicos antes de perderem a voz, a memória ou a saúde, os filhos não estão lá. Surgem, ao fundo, nos dias de visita, mas nenhum dos personagens principais parece ter filhos. Artistas de ópera, eles possivelmente não tiveram tempo para a maternidade ou a paternidade. E esta não parece ser nem uma questão, nem um motivo de arrependimento, o que é bastante interessante. Se tiveram filhos, o fato não foi tão marcante a ponto de ser citado, o que de novo é bem interessante. O quarteto é primeiro um trio, que se ampara e se diverte na velhice como os amigos de uma vida inteira que foram e ainda são. A quarta personagem, que chega para fechar o grupo, é uma diva atormentada pela perda da potência, que no seu caso se expressa pela voz que falha. Ela terá de descobrir que pode cantar mesmo com uma voz que não é – nem jamais voltará a ser – a da juventude. E para isso terá de amarrar alguns fios esgarçados do passado.   
Só estou citando os últimos filmes, mas antes destes já tivemos outros em que os filhos aparecem ora perdidos, ora oportunistas na vida dos pais, como no delicioso Elsa & Fred. O que vale a pena perceber é que, cada vez mais, ao contar a velhice pelo olhar de quem a vive, conta-se também da perplexidade dos filhos apatetados diante dos pais. Não mais os pais velhos como um estorvo para filhos que mal dão conta da sua vida, sem saber se os enfiam num asilo ou os carregam para casas ou apartamentos onde mal cabem eles. E sim filhos atrapalhados ou boçais que, quando aparecem, tornam-se um estorvo para os pais.  
A ponto de em E se vivêssemos todos juntos? deixarem o filho de um para fora do portão e ainda lhe darem um banho de mangueira para que vá embora de uma vez e não volte tão cedo. São velhos poderosos – e que reivindicam seu poder mesmo em uma condição de fragilidade – os do cinema. Poderosos porque não se deixam apartar de sua história na velhice, ao contrário. Apropriam-se dela e a usam para viver com intensidade seus últimos capítulos, apesar das inevitáveis perdas e limitações. 
Cabe esclarecer que esta questão, a dos filhos diante da velhice dos pais, que aqui se torna a principal, nos filmes é secundária, quando não inexistente, o que também é muito significativo. Como filha de pais que envelhecem, eu me identifico com esses filhos perplexos e atrapalhados. Como uma mulher que envelhece, me identifico com esses velhos, nos quais me espelho para o futuro não mais tão distante. Em qualquer um dos casos, consigo encontrar discernimento para perceber o quanto é sensacional que os filhos, que se acham tão centrais na vida de seus pais, a qualquer tempo, sejam colocados no seu devido lugar.  
“Minha mãe (ou meu pai) virou criança.” Esta frase, corriqueira na boca de filhos que parecem exaustos, me provoca alguma desconfiança. Soa mais como uma tentativa de potência de filhos que estão se sentindo bem impotentes. Ou soa como uma tentativa de mostrar que sabem o que fazem ou para onde vão, quando de fato se encontram completamente perdidos. Até porque é uma marca do nosso tempo o retardamento da vida adulta, de preferência para sempre. E a velhice dos pais, os adultos por excelência, afunda todas as esperanças inconfessadas de ser adolescente para sempre em pelo menos um lugar no mundo. 
Sinto compaixão por esses filhos, como senti pelos filhos dos velhos do cinema. Como senti por mim mesma à certa altura. Ao perceber que meus pais estavam envelhecendo, em determinado momento achei que tinha de assumir também o comando da vida deles. Considerei que, para ser uma boa filha, tinha de ter todas as respostas. Ou, invertendo o lugar, me apropriar do famigerado “eu sei o que é melhor para eles”. Aos poucos fui percebendo que estava me tornando uma chata pretensiosa. Com tanto medo que eles quebrassem que queria carregá-los no colo, mas minha estropiada coluna vertebral mal dá conta de sustentar meu próprio peso. 
Com a gentileza que lhes é peculiar, meus pais escutavam meus palpites e minhas pregações e, claro, faziam exatamente o que queriam. Devagar fui me dando conta de que era só o que faltava ter vivido e experimentado tanto para chegar à velhice e ter de suportar uma filha tentando mandar neles. Percebi que o importante era estar por perto não só para o que fosse preciso, mas pelo prazer da companhia, e continuar capaz de escutá-los. Se precisam da minha ajuda, eles mesmos me dizem – não só com palavras, mas de maneiras mais sutis. E se fazem coisas que eu considero mais arriscadas, tanto a decisão quanto o risco continuam sendo deles, como sempre foram. Não por minha majestosa concessão, mas porque não tenho nenhum direito de impor qualquer vontade. Se depois de me tornar adulta eu nunca permiti que meus pais interferissem de forma autoritária na minha vida, por que é que eu me acharia no direito de me meter de forma autoritária na deles quando estão envelhecendo? Escutar de verdade ainda é o começo e o fim de qualquer relação de respeito mútuo – e de amor. 
Mas nós, os filhos, nos atrapalhamos mesmo. E acho muito divertida a ironia com que somos tratados nessa sequência de filmes, mesmo quando não estamos. (Como assim não estamos, nós, tão centrais na vida dos pais? Que horror!) Alguns se atrapalham porque se confrontar com a velhice dos pais é se confrontar com a certeza de que não há mais jeito de escapar da vida adulta. E, para quem achou que poderia continuar sendo filho para sempre, é uma complicação virar gente grande de uma hora pra outra. Ao tentar dar ordens aos pais, esses filhos na verdade estão dizendo: “Não me deixem sozinho nesse mundo tão ameaçador. Não me desamparem!”. E a irritação que manifestam diante das limitações dos pais muitas vezes é um jeito tosco de disfarçar o pavor que sentem diante do desamparo iminente. Isso para alguns.  
Para todos a velhice dos pais anuncia a própria velhice. É talvez o primeiro grande confronto com a fragilidade e com a finitude. Os filhos que olham aterrorizados para os passos claudicantes dos pais não temem apenas que eles caiam, mas principalmente que serão os próximos a ter pernas que vacilam. Ainda que não confessem nem para si mesmos, talvez seja este o maior horror. E este é um momento bem periclitante da vida. E quando isso se dá por volta dos 40, 50 anos, o confronto acontece quando o corpo está dando os primeiros sinais inequívocos de que já não somos tão jovens. É um duplo desafio, a velhice dos pais e o anúncio do próprio envelhecer. Que nem se compara, e isso também é preciso lembrar, com o desafio abissal que é ser velho – e ser velho nesse mundo em que, além de todas as dificuldades da idade, é preciso brigar para ser respeitado. E escutado.  
Como já contei aqui, compartilho com um grupo de amigos o projeto de envelhecermos juntos num condomínio construído por nós em uma cidade pequena perto de uma grande. Uma cidade pequena por ser mais amigável a quem tem limitações físicas, sem contar que perder o pouco tempo de vida que resta empacado no trânsito não parece uma boa ideia. E perto de uma grande porque queremos continuar indo ao cinema, ao teatro, às livrarias e aos cafés e restaurantes, e numa cidade maior as alternativas gratuitas ou de baixo custo de eventos culturais são mais promissoras para quem vive de aposentadoria. Nossas casas terão fundos para um pátio comum, para o caso de querermos nos encontrar, e frente individual, para a rua. O pacto, já antigo entre nós, parte da ideia de envelhecer no mundo – e não apartado dele, como acontece com a velhice asilada – e perto de quem sabe de nós. Além de nos dar a possibilidade de amparar as dificuldades um do outro e de baratear os custos de manutenção. Neste sentido, nos aproximamos dos personagens de E se vivêssemos todos juntos?, mas com um pouco mais de privacidade. 
Tenho encontrado gente na mesma faixa etária com projetos semelhantes com o seu grupo de amigos. E acredito que esta também é uma mudança importante. Acho que a minha geração está diante dessa questão como nenhuma outra. E tem aprendido algo importante com sua própria perplexidade diante da velhice dos pais. A questão dos meus pais, que sempre viveram com salário de professor, o que todo mundo sabe o que significa no Brasil, era fazer uma poupança para não depender dos filhos na velhice. A frase clássica dos pais bacanas, que hoje estão nos 70, 80 anos, é: “Não quero dar trabalho para os meus filhos dependendo deles”. Ou: “Não quero incomodar os meus filhos”.  

A frase da minha geração – e que já se anuncia na boca dos velhos do cinema – é outra:

– Incomodar os meus filhos? Nem me importaria. O que não quero é que os meus filhos me incomodem! 

 (Eliane Brum escreve às segundas-feiras na Revista Época )

 

 

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